A manifestação convocada para dia 15 de Novembro surge na tentativa de dar corpo ao profundo mal-estar que se vive nas escolas desde o início do corrente ano lectivo. Um mal-estar feito de enorme cansaço pela sobrecarga de tarefas burocratizadas com que os professores são hoje confrontados, de frustração por se constatar que há cada vez menos tempo para os docentes se dedicarem àquilo que devia ser a essência da sua profissão – a preparação das aulas e a leccionação das mesmas –, de revolta por se verificar que a profissão de professor, um dos pilares de qualquer sociedade decente, continua a ser desprezada pelo poder político, mas também de impotência por se verificar que, depois de tanta esperança associada às jornadas de luta do passado ano lectivo, a situação dos professores e das escolas parece ter regredido à estaca zero. Existem, pois, muitas e boas razões para os professores comparecerem na manifestação a que a APEDE e o MUP se associaram e a que decidiram dar forma legal:
· Uma dessas razões é a necessidade de recolocar a causa dos professores na agenda política e mediática, com uma nota “pedagógica” fundamental: essa causa não é só dos professores, não é um mero reflexo corporativo, mas é, isso sim, uma causa de toda a sociedade portuguesa, de todas as famílias que têm educandos na escola pública, dado que a pressão do governo para se fabricar, demagogicamente, um sucesso escolar artificial irá ter as mais funestas consequências nas qualificações das crianças e jovens que hoje frequentam o sistema público de ensino. Dessa pressão faz parte a recente fornada de exames nacionais feitos à medida de resultados que pouco dizem sobre os conhecimentos efectivos dos alunos – os quais, diga-se até à exaustão, estão muito longe de depender exclusivamente do trabalho dos professores. Aqui a palavra de ordem terá de ser: “Nem mais uma nota inflacionada para efeitos de propaganda!”
· Outra razão, que se prende com a primeira, para esta manifestação é precisamente a necessidade e a urgência de desmontarmos, perante a opinião pública, as intensivas manobras de propaganda que o governo investiu sobre as escolas no arranque deste ano lectivo, procurando, mediante o “milagre da multiplicação de computadores”, iludir os motivos profundos do nosso atraso em matéria educativa: o facilitismo cada vez maior na transmissão dos saberes e nas exigências colocadas aos alunos, facilitismo que serve para gerar, estrategicamente, uma ignorância que bloqueia a emergência de futuros cidadãos críticos, capazes de usar as novas ferramentas de informação para, com elas, produzir conhecimento; o desajustamento dos conteúdos programáticos, que seguem a linha geral de degradação dos saberes; o número excessivo de alunos por turma que impede um acompanhamento minimamente individualizado dos mesmos, dentro de uma escola cada vez mais transformada num misto de armazém e cárcere; o tempo que os professores gastam em tarefas acessórias – reuniões em ritmo semanal, produção e preenchimento de documentos inócuos, planificações feitas ao milímetro – que, como foi dito acima, lhes rouba as horas necessárias para se concentrarem no trabalho das aulas e nos alunos e que os obriga a ir buscar essas horas ao seu tempo de lazer; etc., etc.
· Uma razão maior para esta manifestação é também a de dar voz a esse enorme grito surdo, contido no número astronómico de professores que têm vindo a solicitar o aposentamento antecipado e que preferem suportar perdas significativas de rendimento a continuar num sistema de ensino que os maltrata. Convém sublinhar que este não é apenas um problema geracional dos professores “mais velhos”, pois ele representa a ponta (muito grande, aliás) de um imenso icebergue de descontentamento. A verdade é que as “magníficas” reformas que esta equipa ministerial impôs às escolas e aos professores, forçando-os a trabalhar muito mais horas, foram particularmente lesivas para os nossos colegas com maior tempo de serviço, que viram a sua carga de trabalho penosamente acrescida. Também aqui importa desmontar a cortina de fumo fraudulenta com que o Ministério da Educação quis legitimar estas “reformas”, quando injuriou a grande maioria dos professores colando-os à imagem de um “bando de ociosos” que era preciso pôr na ordem e Neste ponto é necessário um grande esforço de esclarecimento da opinião pública, o qual permanece por fazer, mostrando a enorme insensibilidade social que subjaz à forma como este Ministério tem tratado os professores em geral e os mais velhos em particular. As reduções na componente lectiva não são, nem nunca foram, um prémio à suposta “ociosidade” dos professores, mas tão-só o justo reconhecimento de que, decorrido já um período longo de trabalho, os professores têm direito a um número maior de horas para recuperarem a energia necessária. A sociedade portuguesa continua, em grande parte, insensível ao desgaste físico e psíquico que a profissão docente acarreta e encara o professor como alguém a quem é legítimo tudo exigir sem, ao mesmo tempo, o compensar e reconhecer a centralidade da sua função. O próprio Estatuto da Carreira Docente consagra esta cultura que, de facto, não consegue esconder um profundo desprezo pela classe docente: leiam-se os seus artigos 10.º a 10.ºC e o 35.º, e medite-se na panóplia de exigências e de tarefas que aí são exigidas aos professores, em contraste com o carácter esquálido dos direitos que lhes são atribuídos, muitos dos quais, na verdade, acabam por ser deveres com outro nome. Esta cultura que agride os professores com uma sobrecarga de requisitos, boa parte deles impossíveis de preencher face à degradação geral das condições de trabalho, explica que tantos professores estejam a solicitar as aposentações antecipadas. Tamanha hemorragia de profissionais deveria fazer disparar todos os sinais de alarme, caso tivéssemos pela frente governantes com um mínimo de bom senso. Também isto justifica que os professores venham para a rua protestar contra políticas que os desrespeitam no cerne mais essencial da sua condição de trabalhadores intelectuais. Aqui a palavra de ordem terá de ser: “Basta de desprezo! Exigimos o respeito devido à importância da nossa profissão!”
· A luta contra o modelo de avaliação do desempenho tem de se inscrever neste quadro mais global e não pode ser o foco exclusivo do nosso protesto. Esse modelo cumpre duas finalidades: servir de instrumento global de controlo sobre os professores, inibindo a sua autonomia e reforçando os comportamentos de obediência; servir de meio de coerção para o já referido fabrico de sucesso escolar artificial. Neste momento específico da nossa luta, a imposição do modelo de avaliação serve também para o governo mostrar que consegue dobrar a cerviz de toda uma classe profissional. Os professores servirão de exemplo para aquilo que José Gil designou como produção de “subjectividades obedientes”. Acreditamos que são estas as razões pelas quais importa lutar contra a imposição deste modelo às escolas, explicando em todos os órgãos de comunicação a que tenhamos acesso que esse combate não se deve a um qualquer “medo” que os professores tenham de ser avaliados, mas ao facto de esse modelo trazer no bojo formas de uniformização empobrecedora do trabalho docente, de autoritarismo arbitrário, de pressão indisfarçada para se inflacionar as classificações dos alunos, distorcendo a expressão correcta dos seus resultados escolares reais e hipotecando, desse modo, a aquisição efectiva de conhecimentos. Se forem confirmados os piores cenários que já circulam por aí – o de que o Ministério se prepara para impor uma avaliação centralizada on-line, passando por cima da “autonomia” das escolas –, os professores terão toda legitimidade para desencadear um processo de rejeição à escala de todos os estabelecimentos de ensino. Por isso, a luta contra o modelo de avaliação do desempenho deve ser travada também por uma questão de princípio: a obstinação absurdamente autista com que o governo quer impor este modelo, à revelia de todos os professores e apenas para afirmar o seu autoritarismo, deve ser motivo suficiente para uma grande manifestação de recusa da nossa parte. É a dignidade de toda uma classe profissional que está em causa. E, ao mesmo tempo, estão também em causa o futuro da própria democracia nas organizações e o futuro da cidadania neste país.